terça-feira, 23 de dezembro de 2014



O MENU DE MICHELANGELO 

Por J. A. Dias Lopes


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O menu em papel, ilustrado, que Michelangelo fez com lápis carvão


Relendo o belíssimo livro de Francisco Lellis e André Boccato, intitulado Os Banquetes do Imperador – Menus Colecionados por Dom Pedro II (Editora Boccato, São Paulo, SP, 2013), lembrei-me que já escrevi mais de uma vez sobre as origens do cardápio. Dou um exemplo. Em crônica publicada no dia 11 de maio de 2011, no caderno Paladar, do jornal O Estado de São Paulo, referi-me ao que seria o primeiro menu conhecido. (Aliás, foi um dos meus textos mais plagiados na internet. Tenho sido vitima desse crime. Algumas pessoas copiam trabalhos que faço e reproduzem integralmente ou com ligeiras modificações em blogs particulares, assinando-os com o próprio nome. Pode?). 

Qual o autor do provável menu número um? O genial Michelangelo Buonarroti (1475-1564), autor em Roma da escultura Pietà, dos afrescos da Capela Sistina e da arquitetura da cúpula da basílica de São Pedro. Na crônica do Paladar, falei em uma lista de comidas e bebidas, acompanhadas de suas respectivas ilustrações, feitas em papel, com lápis carvão, guardada na Casa Buonarroti, dedicada à memória obra de Michelangelo, em Florença, na Itália. 

Não se sabe com que objetivo ele fez o cardápio, por que o ilustrou e em que ano isso aconteceu. Alguns acreditam tratar-se de um elenco de pratos levado por um ajudante analfabeto à taverna para buscar a comida do mestre. Outros sustentam que Michelangelo o enviou à sua cozinheira iletrada, indicando os pratos e bebidas que desejava saborear no dia. 

A palavra menu é francesa. Compreende os pratos que vão ou podem ser servidos à mesa. Se pertencer a um restaurante, o preço deve aparecer junto ao nome dos pratos. Além disso, precisam estar na ordem de serviço. Muitos restaurantes populares, que recebem turistas estrangeiros, incluem a foto do prato. É para facilitar a compreensão da clientela. 

Entretanto, as enciclopédias de gastronomia ignoram o menu de Michelangelo. Dizem que a estreia oficial do cardápio em papel ocorreu na segunda metade do século 18, em banquetes da corte de Luís XV (1710-74). Até então, imperava a surpresa. Os convidados só descobriam o que comeriam quando os pratos eram oferecidos a eles. O museu do Palácio de Versalhes, residência oficial do rei, conserva o cardápio elaborado pelo artista Brain de Sainte-Marie para um banquete oferecido a Luís XV em 1751. Entretanto, a primazia é contestada pelos alemães. Dizem que lançaram o menu em 1521, no banquete de abertura da Dieta de Worms. Mas extraviaram a prova.

O menu de Michelangelo mede 21 cm por 14,5 cm e separa os pratos em três grupos. Permite-nos, sobretudo, imaginar as preferências gastronômicas do artista. Pelo volume, o artista teve companhia à mesa. Apesar das grafias dialetais, é quase todo compreensível. No desjejum, havia dois pães e arenque defumado, salgado ou conservado em azeite, talvez com cebola, alho e azeite. Para beber, um boccale (jarra de cerâmica) de vinho. 

Ao meio-dia, Michelangelo comeu salada, aparentemente à base de couve preta, azeitonas, ovo cozido e pedaços de queijo. A seguir, um pratinho de espinafre, anchovas e tortelli, a massa redonda ou em forma de meia-lua, provavelmente recheada com carne de javali. Depois, quatro pães e bruscino, um antigo queijo fresco e mole toscano à base de leite de ovelha e cabra. Já a última refeição reuniu seis pães, dois pratos de sopa de erva-doce, um arenque e outra jarra de bom vinho. 

Apesar de receber gordas pensões e viver em ambiente requintado, Michelangelo se revelou uma pessoa de gosto simples. Aliás, era pessoa singela, porém de índole impulsiva. Na juventude, ridicularizou uma escultura do colega Pietro Torrigiano ou Torrigiani (1472-1528) e recebeu de volta um soco que lhe desfigurou o nariz. 




       Michelangelo: soco no nariz 

"A pequena deformação lhe parecerá daí por diante um estigma (…), uma mutilação ainda mais dolorosa para quem, como ele, era um sofisticado esteta que considerava a beleza do corpo uma legítima encarnação divina na forma passageira do ser humano", teoriza o fascículo 17 da Coleção Gênios da Pintura (Abril Cultural, São Paulo, SP, 1967), sobre o artista. Michelangelo expressou essa obsessão pela arte em todas as obras que nos legou, inclusive nos pequenos desenhos do seu menu.

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