quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015



AS EMPADINHAS DE MÁRIO DE ANDRADE


Por J.A. Dias Lopes*

©2015 J. A. Dias Lopes – Todos os direitos reservados – Proibida a reprodução total ou parcial 



Mário de Andrade (1893-1945)

O escritor brasileiro Mário de Andrade, autor do romance Macunaíma, uma das obras-primas da literatura brasileira, morreu no dia 25 de fevereiro de 1945. Portanto, nesta quarta-feira se completam os setenta anos do seu falecimento. Nascido em São Paulo em 1893 e falecido na mesma cidade, ele foi romancista, contista, poeta, ensaísta, folclorista, crítico de arte, musicólogo, agitador cultural e “maestro” de cozinha. Essa faceta, aliás, é a que nos interessa aqui. Mário de Andrade tinha pela culinária o mesmo interesse conhecido pelas fontes autênticas da cultura e da realidade brasileiras.

Não era de enfrentar o forno e o fogão na prática. Em compensação, teorizava com propriedade sobre comida. Em casa, dava instruções precisas a Sebastiana Campos, Bastiana ou Tana, como ela era mais conhecida, a cozinheira de mão cheia que trabalhou para ele na Rua Lopes Chaves, 546, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, onde viveu com a mãe Maria Luísa, ou Mariquinha, e a tia Ana Francisca, ou Nhanhã.

Mostrou a sabedoria gastronômica literariamente. No conto O Peru de Natal, do livro Contos Novos, relata o preparo dessa ave com detalhes de mestre-cuca. Descreve as duas farofas que a enriquecem, “a gorda com miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga”. Usa a primeira farofa para rechear o papo, acrescida de ameixa-preta, nozes e um cálice de jerez.

A seguir, fala da comilança com requintes de gourmet. “A carne mansa, de um tecido muito tênue, boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa-preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz”. O Peru de Natal é um conto de inspiração autobiográfica.

O personagem vive com a mãe viúva, uma tia e a irmã, em uma família patriarcal, que mantém tradições e respeita as aparências, ou seja, em condições semelhantes à do escritor. Além disso, Mário de Andrade era bom de mesa. Declarou sem rodeios ao jornalista Joel Silveira, na reportagem publicada na Revista Acadêmica (Rio de Janeiro, 1939): “Gosto de comer e beber bem”.

A casa da Rua Lopes Chaves parecia viver em festa. Na peça anexa ao quarto, onde se encontrava uma rica biblioteca, Mário de Andrade recebia os amigos. Apareciam em grupos, eram escritores, pintores, escultores etc. Discutiam literatura e artes em geral, participavam de saraus animados pelo piano que o anfitrião tocava. Comiam doces brasileiros, como os de batata-rosada (e não roxa ou branca, conforme a exigência do anfitrião) e de abóbora; bebiam licores caseiros ou cachaça pura – Mário de Andrade preferia a pernambucana Manjopina, primeira industrializada no Brasil, cuja produção começou em 1756 no engenho Manjope, no município de Igarassú, Região Metropolitana do Recife.

Quando havia almoço ou jantar, os convidados passavam na cozinha logo ao chegar e cumprimentavam Tana. A cozinheira trabalhou quase meio século com a família do escritor, até morrer na década de 1970. Mário de Andrade adorava as empadinhas de camarão que Tana preparava segundo uma antiga receita de família. Um dia Tana aprendeu a fazer uma massa diferente. O escritor provou e não gostou, pois a achou “dura”. Foi à cozinha levando uma empadinha na mão e disparou: “Se eu jogar esta aqui na parede ela não arrebenta”.

Thereza e Carlos Augusto Andrade Camargo, sobrinhos e herdeiros de Mário de Andrade (o escritor morreu solteiro e não teve filhos), garantem em São Paulo, onde vivem, que ninguém preparava um bife na manteiga como ela. Também eram divinas as suas tortas de palmito e frango. A cozinheira ainda fazia uma extraordinária paçoca de carne, usando lagarto. Um dos convidados disse ser “de lamber os beiços”. Desfiava a carne, fritava e batia com farinha de mandioca no velho pilão da casa. Os herdeiros de Mário de Andrade conservam um caderninho de capa dura com 34 páginas onde estão essas e outras receitas. Só as sobremesas são 131.

Foi escrito por duas mulheres – as letras são femininas. Acredita-se que as autoras foram Dona Mariquinha e Dona Nhanhã. Aliás, a mãe e a tia do escritor eram tarimbadas doceiras e trabalhavam inclusive para fora. Vendiam sequilhos, amanteigados, biscoitinhos de polvilho, bons-bocados, broas de coco, sonhos de massa cozida, pastéis de nata e outras delícias. Mário de Andrade adorava doces e começou a apreciá-los na infância, influenciado por elas. No criado-mudo ao lado da sua cama sempre havia um vidro de sequilhos, que exigia delicados, leves e quebradiços. Ele os saboreava em êxtase.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015


TOMIE OHTAKE E O SUSHI

Por J. A. Dias Lopes


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Todos os domingos, Tomie Ohtake, a maior pintora do Brasil, dava um almoço em sua casa no bairro do Campo Belo, em São Paulo. Chamava os dois filhos arquitetos, Ruy e Ricardo, suas mulheres, os dois netos e uma ou duas pessoas que não eram da família. Há menos de dois anos fui um desses privilegiados – e estava na fila para ser convidado outra vez. Ruy, meu amigo há anos, havia prometido a deferência. Infelizmente, isso não vai acontecer. Tomie Ohtake faleceu hoje, 12 de fevereiro, aos 101 anos de idade.


Antes do almoço, ela oferecia aperitivos no ateliê, localizado em sua própria casa. Eram os otsumami – conjunto de petiscos japoneses. Ali as pessoas entabulavam conversas e se preparavam para ao almoço, na sala de jantar ao lado. As receitas que iam à mesa, então, mudavam de nacionalidade. Eram sobretudo brasileiras – Tomie apreciava a cozinha baiana. Eventualmente, havia algum prato japonês. No dia em que almocei em sua casa, o sushiman Jun Sakamoto apareceu com uma travessa de sushis, paixão gastronômica da anfitriã. 


Estive com Tomie uma segunda vez, mas a trabalho. Fui fazer uma reportagem para a Revista GOSTO, de São Paulo. Tínhamos uma seção chamada Gosto de Arte. Convidávamos um artista plástico e um cozinheiro. Este interpretava na sua especialidade um quadro do artista. Tomie Ohtake e Jun Sakamoto formaram a dupla da vez. Claro, o sushiman só fez sushi... Para quem não sabe, essa iguaria japonesa tem como base arroz temperado com vinagre de arroz, açúcar e sal, ao qual são incorporados peixes ou frutos do mar crus ou cozidos, verduras frescas ou em conservas e omelete.


Tomie Ohtake sentada ao lado de Jun Sakamoto; em pé, da esquerda para a direita, Ruy Ohtake, J. A. Dias Lopes e Ricardo Ohtake


Tomie aprendeu a gostar de sushi na infância, como todos os seus patrícios. Mas passou por uma experiência diferenciada. Quando tinha 5 anos de idade, adoeceu gravemente. Sua mãe chamou o médico, ele diagnosticou pneumonia e submeteu a garota a uma dieta severa. Naquele tempo, não havia a penicilina, só descoberta em 1928. Uma semana depois, a febre não cedia e o médico concluiu que Tomie ia morrer.


Então, chamou a mãe e mandou suspender a dieta. Tomie lembrava o que aconteceu depois: “Minha mãe perguntou o que eu queria comer e respondi: sushi. Comi um pouquinho e no dia seguinte já estava melhor. Assim fui melhorando até me curar”. Qual o sushi que Tomie pedia ultimamente? “O do Jun, que é o melhor de São Paulo”, afirmava. “Outros fazem um bolinho de arroz, colocam um peixe em cima e o deixam grande demais. A gente precisa cortar ao meio para levar à boca. Prefiro saborear o sushi de uma vez só, de uma bocada. Os japoneses chamam isso de hitokuchi.”


Nascida em Quioto, capital do Japão Imperial, substituída por Tóquio, ela desembarcou na cidade de São Paulo em 1936, para visitar um irmão, mas aqui ficou para sempre. Impedida de regressar pela deflagração da Guerra Sino-Japonesa de 1937, casou-se no Brasil, teve os filhos, desenvolveu-se na pintura, depois na escultura, e ficou para sempre. Só voltou a passeio, uma das vezes para ver a mãe morrer nos seus braços. Estrela-guia do abstracionismo brasileiro, Tomie era merecidamente a mais aplaudida artista plástica em atividade no país. 


As grandes manchas coloridas das suas telas, serigrafias e painéis, as variações dos tons, suaves ou contrastantes, a geometria tridimensional das suas esculturas, avalizam um talento, uma inspiração e um domínio da técnica que já foi comparada à exegese. Nada mais certo. A genial artista plástica fazia com a cor, a luz e o espaço o mesmo que os teólogos com a Bíblia. Sayonara, Tomie!

























quinta-feira, 22 de janeiro de 2015



BACALHAUS COM NOMES CURIOSOS 


Por J. A. Dias Lopes 

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Algumas pessoas acharam graça do nome do antepasto ou entrada de origem portuguesa que foi tema da crônica anterior: punheta de bacalhau. Outras prepararam a receita e disseram que ficou saborosa. Mas também não seguraram o riso. Entretanto, punheta de bacalhau não é o único nome curioso dado pelos portugueses a um prato feito com o peixe das águas frias do mar Atlântico Norte, no Círculo Polar Ártico, e a seguir salgado e desidratado. 

Eles também inventaram o bacalhau constipado. Assam postas do peixe nas brasas e finalizam com molho de azeite quente, vinagre e colorau. Acompanham batatas cozidas em rodelas. O nome viria do processo de preparo. Cada vez que as postas viram na grelha, são passadas em água fria, portanto recebem um choque térmico. Se o golpe fosse dado em um ser humano, provocaria constipação nasal. 

Outra receita de nome intrigante é o bacalhau à cobra, que não incorpora o temido ofídio venenoso ou não. Leva apenas o peixe do Atlântico Norte, cortado em quadrados, marinado no leite, empanado, frito no azeite e regado com molho de vinho do Porto. De onde veio o nome? Talvez de alguma cozinheira de má índole ou mau gênio... 

Brincadeiras à parte, há também o bacalhau à nabão, mais fácil de explicar. O nome não se refere a nenhum legume gigante, nem foi dado por alguém que estava em uma grande naba, ou seja, com uma enorme dívida financeira ou considerável prejuízo. Nabão é um afluente do Zêzere, rio que passa em Tomar. A receita surgiu na cidade ou na região. O bacalhau é cozido, desfiado em lascas e vai à mesa com molho de manteiga, leite, farinha de trigo e gemas. 

Um prato de nome intrigante e sucesso mais ou menos recente é o bacalhau à bruxa de Valpaços. Foi criado por uma mulher da cidade homônima, em Alto Trás-os-Montes. Chamava-se Maria, viveu entre os séculos 19 e 20, sofria de problemas mentais. Acabou internada com a fama de bruxa louca. A biblioteca de Valpaços guarda o diário manuscrito no qual ela escreveu a receita. O bacalhau à bruxa de Valpaços é montado em camadas, com cebola, batata, toucinho e temperos, regado com azeite e levado ao fogo em panela de barro. 

Existe ainda o bacalhau à João do Buraco, inventado pelo dono de um antigo restaurante do Porto que tinha esse nome. Hoje, é especialidade não só da Capital do Norte de Portugal, mas de todo o Douro Litoral. Uma versão, sem comprovação histórica, diz que o sobrenome Buraco veio da aldeia simples ou da casa onde ele tinha vivido. 

Na receita que inventou, o bacalhau é fervido, cortado em lascas e reservado. A seguir, refoga-se cebolas no azeite e se faz um molho consistente à base de manteiga derretida, leite, farinha de trigo e gemas. A seguir, prepara-se novamente à parte um purê de batatas com manteiga e leite, adicionando-se claras em neve. Finalmente, o prato é dourado no forno, com o bacalhau montado em camadas. Intercala-se o peixe do Atlântico Norte, o refogado de cebolas, a salsinha, a pimenta, as amêijoas, os camarões, o molho e o purê. 

A alma, considerada princípio da vida, também serve de inspiração aos portugueses, como mostra o bacalhau espiritual. Em seu preparo, o peixe do Atlântico Norte é cortado em lascas, refogado e vai ao forno com camadas de pão de forma e bechamel. Os fãs garantem entrar em êxtase ao saboreá-lo – daí o nome místico. Foi criado em fins da década de 1940 no restaurante Cozinha Velha, nas antigas cozinhas do Palácio de Queluz, pela sua concessionária, a condessa Almeida Araújo. Ela se inspirou na receita de brandade de morue, da cozinha francesa. 

Por último, há o bacalhau nunca chega. O rei português dom Carlos (1863-1908) apareceu de surpresa a um dos seus palácios, vindo de uma caçada. Na despensa, porém, havia pouca coisa. Então o cozinheiro improvisou: pegou uma posta de bacalhau, cozinhou-a no leite, desfiou, dourou no azeite com cebola, presunto cru em tiras, salsinha, batata palha e ovo cru ligeiramente batido. 

Dom Carlos gostou tanto que repetiu várias vezes. Daí por que o prato foi batizado de nunca chega. Entretanto, o nome da receita soa nos ouvido de muitos como redundante e poderia ser dado a todas as que levam o peixe. Para os milhares de apreciadores de bacalhau, ele invariavelmente nunca chega. 


Aprenda a preparar o bacalhau nunca chega em RECEITAS DAS CRÔNICAS

terça-feira, 20 de janeiro de 2015





UM BACALHAU DE NOME CHULO







Por J. A. Dias Lopes



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Punheta de bacalhau/Foto Reinaldo Mandacaru


No primeiro fim de semana de janeiro aprendi a fazer um antepasto ou entrada da tradição portuguesa que está em moda nos almoços e jantares entre amigos em São Paulo. Muitas vezes é preparado por diversão, para “tirar sarro” com os convidados, porém o sabor se apresenta excelente. Em São Paulo, José Roberto Tambasco, até o ano passado um dos principais executivos do Grupo Pão de Açúcar, é um craque na sua elaboração. O antepasto ou entrada tem nome chulo, ou melhor, grosseiro. Chama-se punheta de bacalhau. 

São lascas cruas do famoso peixe do Atlântico Norte, no Círculo Polar Ártico, dessalgadas e hidratadas, “marinadas” de um dia para o outro em molho de azeite, cebola, alho, azeitona preta, salsinha e um pouco de vinagre, servidas sobre fatias ligeiramente torradas de broa de milho. Para inúmeros portugueses, o nome viria do fato de, na montagem do prato, alguns cozinheiros pressionarem as lascas com o punho. 



Entretanto, o escritor gastronômico Virgílio Nogueiro Gomes, de Lisboa, discorda. “Foi uma designação dada mais pelo gesto de esfarripar o bacalhau, envolvendo-o em um pano limpo e fazendo movimentos para frente e para trás que se assemelham aos do onanismo”, diz. Portanto, o nome é visceralmente chulo. 

Em Salvador, na Bahia, há também uma punheta culinária. Sua receita, porém, não tem qualquer relação com a portuguesa. É um bolinho frito denominado punheta de estudante. Leva tapioca e leite de coco. A punheta soteropolitana pode ser “seca”, quando servida pura, ou “molhada”, se passada em açúcar e canela. O nome viria dos ingredientes simples e de baixo custo.

Mas seria melhor atribuí-lo à irreverência e bom humor dos baianos. A punheta soteropolitana também é chamada de bolinho de estudante. O escritor baiano Jorge Amado, porém, no livro O Sumiço da Santa (Companhia das Letras, São Paulo, 2010), recusa essa designação: “Como é mesmo tia Romélia? E tu não sabe menina? Olha que tu sabe muito bem, o nome é punheta, bolinho de estudante é pronúncia de besta!”

Aprenda a fazer punheta de bacalhau em RECEITAS DAS CRÔNICAS.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014


POR UM PRATO DE LENTILHAS

Por J. A. Dias Lopes

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Jacó comprando os direitos de primogênito do irmão Esaú - pintura de Gioacchino Assereto (1600-49)


Convém que a lentilha seja o primeiro alimento ingerido na ceia de Réveillon. É para haver saúde e prosperidade durante o ano. As civilizações mais antigas referendam essa superstição, que viria do fato de os grãos da lentilha dobrarem de tamanho com o cozimento. Paralelamente, seu formato redondo e achatado lembraria uma moeda – e todos sabem que dinheiro traz abundância e prosperidade.

Não por acaso, foi com um prato de lentilhas que Jacó comprou os direitos de primogênito do irmão Esaú, no célebre episódio do Gênesis, primeiro livro da Bíblia. A jornalista gastronômica israelense Ruth Keenan, em La Cuisine de la Bible (Éditions de La Martinière, Paris, 1995) reconstituiu a receita original do prato. Mas cometeu um pecadilho: acrescentou molho concentrado de tomate, ou seja, à base de um ingrediente originário da América que os demais continentes só conheceram depois da descoberta de Cristóvão Colombo. “Fica mais completa”, teria garantido ela.

Ruth Keenan apresenta Jacó como um cozinheiro ardiloso. Ele sabia que Esaú, regressando fatigado do campo, após uma dura jornada de trabalho, faria qualquer coisa para comer um prato de lentilhas. “Deixa-me comer um pouco dessa coisa vermelha (lentilhas vermelhas), porque estou muito cansado”, pediu Esaú. Jacó respondeu: “Vende-me primeiro o teu direito de primogenitura”. Esaú questionou: “Morro de fome, que me importa o meu direito de primogenitura?”. Jacó exigiu: “Jura-me”. Esaú jurou e vendeu a primogenitura a Jacó, que lhe entregou um prato de lentilhas acompanhado de um pão.

Esaú e Jacó eram filhos de Isaque e Rebeca. A história que evocamos é relatada no capítulo 25 do Gênesis, entre os versículos 19 e 34. Como os bebês em gestação lutassem no seu ventre, Rebeca foi consultar o Senhor, que lhe explicou: “Tens duas nações no teu ventre; dois povos se dividirão ao sair de tuas entranhas. Um povo vencerá o outro e o mais velho servirá ao mais novo”. 

Acredita-se que a lentilha seja originária do Oriente Médio, o mesmo acontecendo com a sua sopa. Todos os povos da região as conhecem. No prato que entregou ao irmão faminto, Jacó usou a lentilha vermelha. Mas também existem a amarela, vermelha, marrom, verde e preta. O tamanho do grão pode ser miúdo ou um pouco maior. Ultimamente, desfruta de prestígio internacional a lentilha verde Le Puy, cultivada na região francesa homônima e vendida com selo de origem da União Europeia. É muito usada em pratos de frutos do mar e carnes de caça, bem como em saladas. 

Em seu livro, Ruth Keenan relaciona a cozinha com doze passagens bíblicas. Os capítulos se chamam O paraíso, as primeiras delícias; José e seus irmãos: o festim do reencontro; Sansão e Dalila: o fruto da paixão; Davi e Betsabá: o gosto do pecado; e assim por diante. O que fala de Esaú e Jacó tem outra receita apetitosa, além da sopa de lentilhas: um gigot de cordeiro com frutas vermelhas. Feliz 2015!


Aprenda a fazer a sopa de lentilhas que Jacó preparou para Esaú em RECEITAS DAS CRÔNICAS.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014



MARCO POLO E O MACARRÃO

Por J. A. Dias Lopes

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A série milionária do serviço de vídeos on-line Netflix, em dez episódios, sobre o explorador e mercador veneziano Marco Polo (1254-1324), que estreou mundialmente no dia 12 de dezembro de 2014, fez-nos lembrar que já se atribuiu ao maior viajante da Idade Média a introdução do macarrão (pasta seca) na Itália. 


Edição original da obra de Marco Polo

A fonte dessa versão seria o Libro delle meraviglie del mondo, conhecido por Il Milione, que ele ditou ao amigo e literato Rustichello da Pisa. Escrito originalmente em franco-veneziano, trata da viagem que Marco Polo empreendeu ao Extremo Oriente, entre 1271 e 1295, acompanhado do pai Niccolò e do tio Matteo.

O aventureiro zarpou de Veneza aos 17 anos, para uma expedição monumental através de mares pouco navegados, montanhas abruptas, plainos sem fim ou desertos inóspitos, regiões de sol abrasador ou temperaturas enregelantes, terras virgens ou cultivadas. Regressando à terra natal, 24 anos depois, lutou ao lado dos compatriotas na guerra contra a República de Gênova e caiu prisioneiro do inimigo em 1298, durante a batalha naval de Curzola. No cárcere, ditou ao colega de cela Rustichello da Pisa seu livro memorável. 

Partindo de Veneza, atravessou os planaltos da Anatólia, no Irã, o Alto Afeganistão, o Pamir e o Turquestão chinês, para alcançar Beijing ou Pequim, onde teria exercido certa influência junto a Kublai Khan, o imperador mongol da China; na volta, percorreu a Indochina, Indonésia, Ceilão e costa da Índia. Il Milione menciona todos esses lugares e inclusive alguns não visitados por ele, como o arquipélago do Japão, chamado de Cipango, as costas da Arábia, a Etiópia e o litoral africano até Zanzibar. 


O explorador e mercador veneziano Marco Polo (1254-1324)

Marco Polo voltou à terra natal com riquezas, tecidos e especiarias de valor na época. Inicialmente, seus patrícios acharam as histórias exageradas. Entretanto, depois de confirmarem algumas delas, atribuíram ao explorador contribuições notáveis. Disseram que ele trouxe da China informações sobre a pólvora, o compasso marinho, a máquina impressora, o sorvete e, sobretudo, o macarrão, do qual foi considerado por muito tempo o introdutor na Itália. A última história é seguramente fantasiosa. 

Em torno do ano 1000, portanto dois séculos e meio antes da viagem de Marco Polo, o livro De arte coquinaria per vermicelli e maccaroni siciliani, escrito por Martino Corno, cozinheiro do patriarca de Aquiléia, no noroeste italiano, publicou a primeira receita conhecida de macarrão.

No século 12 já funcionava nas vizinhanças de Palermo, hoje capital da Sicília, uma indústria de pasta, na época chamada de itrija (palavra derivada do árabe itriyah, pão cortado em tiras). Em outra obra, de 1154, Il libro di chi si diletta a girare il mondo, do geógrafo de origem árabe Al-Idrisi, que atuava na Sicília, fala-se de uma localidade chamada Trabia, cuja população fazia e exportava macarrão. 

Tais informações levaram à certeza de que, em vez de ter sido trazida por Marco Polo, a pasta seca desembarcou na Itália pelo sul, com os árabes, quando ocuparam a Sicília no século 9. Os invasores precisaram desidratá-la para carregá-la nas longas travessias pelo deserto e viagens ao exterior, garantindo uma alimentação saborosa e nutritiva. Conheceram o macarrão na Mesopotâmia, que por sua vez o recebeu, por caminhos tortuosos, da China. Em 2005, fechou-se o cerco.

Pesquisadores do Instituto de Geologia e Geofísica da Academia de Ciências de Pequim encontraram nas ruínas de Lajia, junto ao Rio Amarelo, um recipiente contendo fios de massa cilíndricos, à base de milhete (planta herbácea de origem asiática), feitos 4 mil anos atrás. Conclusão: até prova em contrário, os chineses são os pais do macarrão. 

Mas os italianos não se entregam. Ultimamente, renunciam à versão que envolve Marco Polo, porém minimizam as contribuições dos árabes e chineses. A tendência dos seus historiadores gastronômicos é considerar que, como o pão e outras jóias da culinária mundial, a pasta seria um alimento de criação espontânea e coletiva, surgida ao mesmo tempo entre vários povos, como resultado da descoberta dos cereais, de seu cultivo e destino alimentar.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014



VÁ DE PAVLOVA NAS FESTAS 



Por J. A. Dias Lopes



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Quem a viu dançar garante que, quando ela saltava, “voava como um cisne”. Nenhuma bailarina combinou tão bem a leveza de movimentos e o lirismo interpretativo. A plateia emudecida não tirava os olhos de Anna Pavlova (1881-1931). Um biógrafo afirmou que o auditório parecia estático. “Ouvia-se até o zumbido dos insetos”, contou um deles. Nascida em São Petersburgo, na Rússia, e morta em Haia, nos Países Baixos, Anna Pavlova encantou o mundo da arte entre o final do século 19 e início do século 20.

Foi a primeira intérprete de A morte do cisne, o mais famoso solo da história da dança, e também a melhor dançarina de Giselle, joia do balé romântico. Dançou com Vaslav Nijinski e Mikhail Mordkin, dois dos maiores bailarinos de seu tempo. Apresentou-se 3.650 vezes, em inúmeros países, inclusive no Brasil. Em 1918, dançou no Teatro da Paz, de Belém, no Pará; na década de 20, apresentou-se nos teatros municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Admirada e elogiada por contemporâneas ilustres, de Sarah Bernhardt a Isadora Duncan, era chamada carinhosamente pelos fãs de Pavlovtzi (Pavlovinha). 


Anna Pavlova dançando A morte do cisne, o mais famoso solo da história da dança

A grande bailarina teve uma sobremesa leve e elegante batizada com seu nome. É um merengue no qual as claras de ovos são batidas intensamente e, quando se tornam firmes, recebem açúcar, uma pitada de sal, um pouco de amido de milho (Maizena) e um toque de vinagre. A seguir, vai ao forno e, esfriando, é coroado com chantilly e frutas coloridas. Há quem adicione sorvete de creme e, no final, um pouco de licor de frutas (limão ou laranja) ou de vinho do Porto. Como a personagem que homenageia, de tão leve... parece voar. Pelo sabor delicado e beleza do acabamento, é uma sugestão de sobremesa para as comemorações do final de ano. 

Austrália e Nova Zelândia disputam a sua invenção e consideram a Pavlova “patrimônio nacional”. A grande bailarina se apresentou nos dois países em 1926. Os australianos afirmam que o doce foi criado em Perth, em 1935, pelo chef Herbert Sachse. E que seu conterrâneo Harry Nairn, do The Esplanade Hotel, fã inconsolável com a morte da bailarina, chamou-o Pavlova. Já os neozelandeses sustentam que desde 1927 preparavam um doce chamado de Pavlova, porém com receita diferente. Garantem que o inventaram em 1934, ou talvez anteriormente, com outro nome, e tendo o suspiro uma consistência de marshmallow. Em algum momento, que poderia ser o ano de 1935, e sempre precedendo os australianos, deram-lhe o nome da bailarina russa.

Anna Pavlova era filha de uma camponesa pobre, mãe solteira, que se apaixonou por um soldado. A bailarina nunca falava do pai e jamais o procurou, apesar de ele ter virado um rico comerciante. A mãe, preocupada em dar-lhe boa educação, levou-a em 1889, aos 8 anos de idade, ao Teatro Mariinski, de sua cidade natal. Ali, ambas assistiram ao balé A Bela Adormecida. O episódio mudou a vida da garotinha anônima. Motivada pelo espetáculo, Anna Pavlova foi estudar dança clássica e se tornou mundialmente famosa. 

Em 1930, um acidente no meio do caminho parou o trem que a transportava nos Países Baixos. Anna Pavlova desceu para ver o que acontecia. Como estava frio e ela usava roupas leves, contraiu uma gripe que virou pneumonia. Morreu em janeiro de 1931, antes de completar 50 anos de idade. Pressentindo o fim, vestiu o traje de A morte do cisne e se dirigiu a uma pessoa que a acompanhava como se falasse com o maestro da orquestra: “Execute o último compasso bem suave”. Dançando imaginariamente o último balé, fechou os olhos para sempre.


Aprenda o segredo do doce em RECEITAS DAS CRÔNICAS.