sexta-feira, 31 de outubro de 2014

SE DEIXAR O BICHO COME


Por J. A. Dias Lopes

©2014 J. A. Dias Lopes – Todos os direitos reservados – Proibida a reprodução total ou parcial




      Quando mudei do Rio Grande do Sul para São Paulo, no começo de 1968, fui morar em um prédio cuja fachada estava sendo pintada. Jornalista profissional, trabalhava até tarde e por isso levantava na metade da manhã. Um dia acordei com o diálogo de dois pintores que passavam pela minha janela, a bordo de um andaime. “Matei dois agora de manhã”, disse um ao outro. Sobressaltado, acreditando ouvir a confissão de um assassinato, fui saber o que ele realmente fizera. Descobri que o pintor tinha apenas “matado o bicho”, ou seja, bebido em jejum dois copinhos de cachaça.


      Eu desconhecia a locução usada, apesar de popularíssima no Sudeste do Brasil. Segundo a voz do povo, um “bicho” microscópico se desenvolve no estômago humano durante a noite. A única maneira de combatê–lo é beber, antes do café matutino, pelo menos um trago de cachaça ou de qualquer álcool com graduação elevada. Além de exterminá-lo, previniria o ataque de outros microorganismos indesejáveis.
      A locução “matar o bicho” foi comentada por vários autores. Segundo Mário Souto Maior, no Dicionário Folclórico da Cachaça (Edição Particular, Recife, 1973), tornou-se até   eufemismo de cachaça. O personagem de Jorge Amado, no romance Cacau (Companhia das Letras, São Paulo, 2010) faz um pedido: “Dá cá um mata–bicho prá eu não me resfriar”. Luís da Câmara Cascudo, em Locuções Tradicionais do Brasil (Global Editora, São Paulo, 2004), diz que a expressão é conhecida internacionalmente. Chegou ao Brasil, como tantas outras influências, através de Portugal.
      Câmara Cascudo conta uma história curiosa. Uma francesa chamada Madame La Vernade, filha de general, morreu subitamente em 1519. Na necropsia, os cirurgiões encontraram um “bicho” no seu coração. Tentaram matá-lo de todas as maneiras, mas ele sobreviveu aos diferentes antídotos. Só não resistiu a uma compressa de vinho. Teria nascido assim o costume de “matar o bicho”. Cascudo diz que em Portugal ainda existe o verbo “matabichar”, utilizado para designar a primeira refeição do dia.  Em Angola acontece a mesma coisa.   
      Até recentemente, a prática era ridicularizada pelos médicos. Acreditavam que nenhum “bicho” seria capaz de viver ou se multiplicar em ambiente tão ácido quanto a mucosa estomacal. Por isso, reagiram com ceticismo à notícia da descoberta feita em 1979 pelo endocrinolgista australiano Robin Warren. Ele encontrou uma bactéria denominada Helicobacter (pelo formato de hélice) pylori, que vive exclusivamente no estômago humano. Dois anos mais tarde, associado ao colega e patrício Barry Marshall, conseguiu cultivá-la in vitro. Conclusão: até 80% das úlceras gástricas e mais de 90% das duodenais são causadas por esse “bicho” e não pelo estresse ou fatores ligados ao estilo de vida, como se pensava.
      Os derradeiros céticos jogaram a toalha quando, para comprovar a pesquisa, Marshall bebeu uma cultura de Helicobacter pylori e passou a sofrer de gastrite (inflamação estomacal) aguda. Livrou-se da doença após se automedicar por quatorze dias com sais de bismuto e metronidazol (composto dotado de ação antibacteriana e antiprotozoária). A pesquisa teve ainda o mérito de comprovar o efeito dos antibióticos na cura da gastrite, um procedimento hoje recomendado pelo National Institutes of Health (NIH), principal organismo do governo dos Estados Unidos responsável pela investigação biomédica. Em 2005, Warren e Marshall receberam o Prêmio Nobel de Medicina pela descoberta.
      “Matar o bicho” é uma das várias locuções que, entre nós, atribuem à cachaça efeito terapêutico no corpo e na alma. Há também o provérbio politicamente incorreto: “se a vida não tiver graça, mate o bicho com cachaça”. No Brasil, diz-se ainda “acender a lamparina” (ingerir bebida alcoólica em jejum); “salgar o galo” (beber pela primeira vez no dia); “molhar a goela” (com o mesmo sentido); “quebrar o jejum” (tomar cachaça antes de comer ou depois de certa abstinência); “matar o pinto” (afogar as mágoas de um amor desfeito ou que não é correspondido); e “matar a paixão” (com o mesmo sentido).
      Fique claro, porém, que este cidadão não quer fazer proselitismo da cachaça, nem recomenda a ninguém “matar o bicho”. Louva apenas a sabedoria popular. Mas faz uma advertência. Beber cachaça em jejum pode ser uma intuição confirmada pela ciência, porém faz um estrago danado no estômago!



Nenhum comentário:

Postar um comentário