SE DEIXAR O BICHO COME
Por J. A. Dias Lopes
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Quando mudei do Rio Grande do Sul para São
Paulo, no começo de 1968, fui morar em um prédio cuja fachada estava sendo
pintada. Jornalista profissional, trabalhava até tarde e por isso levantava na
metade da manhã. Um dia acordei com o diálogo de dois pintores que passavam pela
minha janela, a bordo de um andaime. “Matei dois agora de manhã”, disse um ao
outro. Sobressaltado, acreditando ouvir a confissão de um assassinato, fui
saber o que ele realmente fizera. Descobri que o pintor tinha apenas “matado o
bicho”, ou seja, bebido em jejum dois copinhos de cachaça.
Eu desconhecia a locução usada, apesar de
popularíssima no Sudeste do Brasil. Segundo a voz do povo, um “bicho”
microscópico se desenvolve no estômago humano durante a noite. A única maneira
de combatê–lo é beber, antes do café matutino, pelo menos um trago de cachaça
ou de qualquer álcool com graduação elevada. Além de exterminá-lo, previniria o
ataque de outros microorganismos indesejáveis.
A
locução “matar o bicho” foi comentada por vários autores. Segundo Mário Souto
Maior, no Dicionário Folclórico da
Cachaça (Edição Particular, Recife, 1973), tornou-se até eufemismo de cachaça. O personagem de Jorge
Amado, no romance Cacau (Companhia
das Letras, São Paulo, 2010) faz um pedido: “Dá cá um mata–bicho prá eu não me
resfriar”. Luís da Câmara Cascudo, em Locuções
Tradicionais do Brasil (Global Editora, São Paulo, 2004), diz que a
expressão é conhecida internacionalmente. Chegou ao Brasil, como tantas outras
influências, através de Portugal.
Câmara Cascudo conta uma história
curiosa. Uma francesa chamada Madame La Vernade, filha de general, morreu
subitamente em 1519. Na necropsia, os cirurgiões encontraram um “bicho” no seu
coração. Tentaram matá-lo de todas as maneiras, mas ele sobreviveu aos
diferentes antídotos. Só não resistiu a uma compressa de vinho. Teria nascido
assim o costume de “matar o bicho”. Cascudo diz que em Portugal ainda existe o
verbo “matabichar”, utilizado para designar a primeira refeição do dia. Em Angola acontece a mesma coisa.
Até recentemente, a prática era
ridicularizada pelos médicos. Acreditavam que nenhum “bicho” seria capaz de
viver ou se multiplicar em ambiente tão ácido quanto a mucosa estomacal. Por
isso, reagiram com ceticismo à notícia da descoberta feita em 1979 pelo endocrinolgista
australiano Robin Warren. Ele encontrou uma bactéria denominada Helicobacter (pelo formato de hélice) pylori, que vive exclusivamente no
estômago humano. Dois anos mais tarde, associado ao colega e patrício Barry
Marshall, conseguiu cultivá-la in vitro. Conclusão: até
80% das úlceras gástricas
e mais de 90% das duodenais são causadas por esse “bicho” e não
pelo estresse
ou fatores ligados ao estilo de vida, como se pensava.
Os derradeiros céticos jogaram a toalha
quando, para comprovar a pesquisa, Marshall bebeu uma cultura de Helicobacter pylori e passou a sofrer de
gastrite (inflamação estomacal) aguda. Livrou-se da doença após se automedicar
por quatorze dias com sais de bismuto e metronidazol (composto dotado de ação
antibacteriana e antiprotozoária). A pesquisa teve ainda o mérito de comprovar
o efeito dos antibióticos na cura da gastrite, um procedimento hoje recomendado
pelo National Institutes of Health (NIH), principal organismo do governo dos
Estados Unidos responsável pela investigação biomédica. Em 2005, Warren e
Marshall receberam o Prêmio Nobel de Medicina pela descoberta.
“Matar o bicho” é uma das várias locuções
que, entre nós, atribuem à cachaça efeito terapêutico no corpo e na alma. Há
também o provérbio politicamente incorreto: “se a vida não tiver graça, mate o
bicho com cachaça”. No Brasil, diz-se ainda “acender a lamparina” (ingerir
bebida alcoólica em jejum); “salgar o galo” (beber pela primeira vez no dia); “molhar
a goela” (com o mesmo sentido); “quebrar o jejum” (tomar cachaça antes de comer
ou depois de certa abstinência); “matar o pinto” (afogar as mágoas de um amor
desfeito ou que não é correspondido); e “matar a paixão” (com o mesmo sentido).
Fique claro, porém, que este cidadão não quer
fazer proselitismo da cachaça, nem recomenda a ninguém “matar o bicho”. Louva apenas
a sabedoria popular. Mas faz uma advertência. Beber cachaça em jejum pode ser uma
intuição confirmada pela ciência, porém faz um estrago danado no estômago!
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